quinta-feira, 27 de junho de 2013




Ao fazer esta foto, não sei porquê mas lembrei-me de Francisco Bernardo e da nossa visita a Galafura e dos poemas de Miguel Torga que ali estão escritos. Este não consigo precisar se lá está, mas é um dos meus preferidos.

 

Meu testamento de Poeta, quero
Que fique na pureza destas ilhas,
Gravado pelas ondas sem sossego.
Para que o leia o sol,
E o vento,
E quem gosta da Vida e movimento,
- Só escrito
Nestas folhas de espuma e de granito.

Em versos com medida das marés,
Rodeado de cor e solidão:
Talvez tenha beleza a doação,
E sentido…
Talvez que finalmente eu seja ouvido,
E cada herdeiro queira o seu quinhão.

(A riqueza que tenho,
Só em fraga despida
E com velas à vista
A posso dar a alguém…
Sou artista
Por humana conquista
E por me ter parido minha mãe.)

Mas se ninguém quiser o meu legado,
Nestes penedos, recusado,
Terá asas em cima…
Asas abertas sobre cada rima
De silêncio salgado.

Aqui, portanto, fique,
Como um ovo num ninho de saudade.
E que ninguém o modifique.
Só este texto indique
A minha última vontade.

Deixo…
(os poetas, coitados,
Têm quintas de papéis arrumados
E barras de oiro… quando a tarde cai… )
Deixo…
Mas a herança aqui vai.

Nenhum de nós desista, se é verdade!
Ligado às próprias achas da fogueira,
Mantenha-se por toda a eternidade
Senhor da sua inteira liberdade
De dizer o que queira.

Tenha amor aos sentidos
E a toda a criadora excitação.
Pouse na terra os olhos comovidos,
Como remos nos flancos coloridos
Da vaga onde navega a embarcação.

Leal e simples, saiba desvendar
Mistérios que é preciso descobrir:
O gesto natural de semear,
E a fome de colher e mastigar
O fruto que do gesto há-de sair.

Nada queira distante da razão,
Por saber que estiola o que não tem
Sol a jorros a dar-lhe projecção
Na rasa lei do chão
Donde a raiz lhe vem.

Veja passar o vento
Carregado de sonhos e poeira…
Veja-o passar, atento
À beleza do próprio movimento…
Entenda num segredo a vida inteira!

E siga como alegre quiromante
Que mesmo no ludíbrio se procura.
Romeu viúvo que perdeu a amante
E lhe fica constante,
Até que a vai amar na sepultura.

E agora assino e selo o testamento.
Leve-me o barco, e fique a barlavento
Esta bruma de mim.
E que o farol, à noite, quando alguém vier,
Ilumine o que eu digo, e o deixe ler
Até ao fim.

Berlengas, 6 de Julho de 1947.
Miguel Torga, in Diário IV.

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