segunda-feira, 23 de maio de 2016

ANIVERSÁRIO DE MINHA MÃE.

Mãe, embora tivesses partido, não abdicamos de recordar este dia pois estarias a festejar o teu centenário. Lembrei-me do que tu, a tia e a avó me contavam dos vossos tempos de meninas e moças, por isso transcrevo um dos muitos poemas que vocês adoravam, escritos pelo vosso companheiro de aula e de carteira. Estarás sempre no nosso coração.

 Foi-se tudo
 como areia fina escoada pelos dedos.
 Mãe! aqui me tens,
 metade de mim,
 sem saber que metade me pertence.
 Aqui me tens,
 de gestos saqueados,
 onde resta a saudade de ti
 e do teu mundo de medos.
 Meus braços, vê-os, estão gastos
 de pedir luz
 e de roubar distâncias.
 Meus braços
 cruzados
 em cruz de calvário dos meus degredos.
 Ai que isto de correr pela vida,
 dissipando a riqueza que me deste,
 de levar em cada beijo
 a pureza que pariste e embalaste,
 ai, mãe, só um louco ou um Messias
 estendendo a face de justo
 para os homens cuspirem o fel das veias,
 só um louco, ou um poeta ou um Cristo
 poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
 e, embora rasgado, beber o perfume
 e continuar cantando.
 Mãe! tu nunca previste
 as geadas e os bichos
 roendo os campos adubados
 e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
 pela flor menina dos meus prados.
 E assim, geraste-me despido
 como as ervas,
 e não olhaste os pegos nem as cobras,
 verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
 De mão nua, entregaste-me ao destino.
 Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
 E sem elmos ou gibões,
 nem lutei nem vivi:
 fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
 e chacais rancorosos.

 Mãe! aqui me tens,
 restos de mim.
 Guarda-me contigo agora,
 que és tu a minha justiça e o exílio
 do perdido e do achado.
 Guarda-me contigo agora
 e adormece-me as feridas
 com as guitarras do fado.

 Mas caberá no teu regaço
 o fantasma do perdido?


Fernando Namora
"Mar de Sargaços"

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